quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Deixando seu cão

A missão não era das mais fáceis, havia um peso nas minhas costas, uma barreira a ser quebrada, não sabia de forma alguma como lidar com aquela situação, e a cada hora que passava o momento se aproximava e o sentimento de pena, pior sentimento, e aflição, iam aumentando no peito até tomarem as batidas do meu coração por completo. Agir daquela forma com um ser tão indefeso, tão meigo e tão dependente de você doía a minha pessoa profundamente, me sentia como a pior espécie da face da terra, a mais diabólica, a mais cruel, a mais sanguinolenta e todos os adjetivos malignos que possa descrever um ser humano sem o mínimo de amor num fiapo de cabelo.
Deixar seu cachorro sozinho na sua casa enquanto você vai para um aniversário, pode ser tarefa fácil pra quem tem um labrador, pastor alemão, fila, não queira enfrentar o mesmo desafio quando se tem um poodle, uma raça extremamente carente da presença humana, dócil, carinhoso, manhoso, no fatídico dia ele infelizmente dormiu a tarde toda assim como eu não resisti ao agradável sono da tarde, foi meu grande erro, a noite ele era outro cachorro, com vitalidade, força de vontade, corria, latia, roia o osso com toda voracidade de quem jamais havia tido objeto ideal para exercitar sua mandíbula e seus pequenos dentes.
A cada ação de sua esperteza o medo ia me consumindo, já passava das 20h e ele sem um pingo de demonstração de cansaço, abatimento ou dormência, muito pelo contrário, continuava suas peripécias pela casa, andava para um lado e pro outro na tentativa de encontrar algo que chame sua atenção, comia bem pouco, bebia sua água, deitava com a cabeça em seu travesseiro olhando firmemente para meus afazeres, nem piscando e nem transportando o olhar para outro lugar, apenas fixo na minha pessoa, tentava não olhar, mas não tinha como, era um olhar que me desarmava por completo, instigava imediatamente a ir até ele e fazer aquele cafuné em sua barriga, carinho do qual é o seu predileto, e agora? Dizia eu.
O momento mais dramático e decisivo chegou, já eram 23h e tinha que sair, passei minha camisa social preta bem demorado justamente para o tempo passar e me ajudar a enfraquecer aquele cachorro, tentativa em vão, o pior ainda estava por vir, estava pronto, de calça e sapato social bico fino, como se ele estivesse adivinhando que seu único companheiro daquela noite teria um outro destino que não seria dormir junto com ele, como se o instinto canino avisasse que seu dono iria lhe deixar sozinho na casa, ele se deitou, em apenas alguns minutos fechou seus olhos que dificilmente se vê com a densa pelugem da cabeça, mas para minha surpresa, o seu leito daquela noite foi o único lugar que ele jamais deveria estar, todos menos aquele lugar, poderia ser a cozinha, próximo a cama como por vezes ele costuma relaxar, ou até mesmo encostado na parede embaixo da janela seu local mais comum para o sono noturno, mas ele me surpreendeu, e se deitou em frente a porta, a minha única passagem, já tinha em mente que iria abrir a porta bem devagar, girar a barulhenta chave e sair de forma cautelar sem fazer muito alvoroço para deixá-lo dormindo, só não contava com a sua astúcia, não sei se propositalmente de dormir em frente a porta, e agora? Dizia eu mais uma vez.
Minha reação foi de incredulidade total, perplexo com o que via em minha frente, me aproximei e sentia sua respiração de sono profundo latejar, passei de forma carinhosa minha mão em sua cabeça, ele se espantou imediatamente, como se já estivesse no 5º sono, tirei-o da direção da porta, era a única alternativa, lhe agraciei mais um pouco dando boa noite, na esperança que aquela seria a última coisa que falaria para ele no dia, ele não relutou, apenas deitou a cabeça de lado no chão e foi fechando os olhos, era a minha vitória, finalmente a sensação de alívio me tomou conta, apanhei meu celular e minha carteira e surpreendentemente, com uma inteligência audaz, ele se dirigiu novamente para a porta, deitou sem pudor em revolta ao meu ato de ter lhe trocado de posição, era realmente uma afronta, naquele momento tive a certeza de que estava numa disputa acirrada com meu cão, de um lado ele impedindo com unhas e dentes a noite solitária, do outro eu, querendo ludibriá-lo com a minha ausência, foi quando as saídas daquele labirinto cessaram até restar apenas uma, a mais dolorosa, aquela que iria partir o coração, abri a porta, ele se espantou novamente, ainda sem saber o que estava ocorrendo arredou para minha inevitável saída, já do lado de fora, fui fechando a porta lentamente olhando para ele, os olhos lacrimejaram, coração apertado por uma sinta, como de alguém que estivesse se despedindo pra sempre de seu ente querido, ele apenas virou a cabeça 30º graus pra direita, interpretei como se fosse a interrogação surgindo na sua mente, fechei a porta, tranquei, me sentindo um agente penitenciário trancando a liberdade de um preso, foi cruel demais comigo e com ele.
Retornei às 4h da manhã, ansioso para saber o estado do meu cão, ingênuo jurava que estivesse dormindo profundamente, mais uma surpresa, chegando perto da porta já escutava aquele latido desesperado, pedindo compaixão e socorro, assustado abri a porta, não vi outra coisa, ele estava acordado, aparentemente a noite toda acordado, pulou nos meus braços de forma meteórica, ainda chorando, como se estivesse pedindo para nunca mais deixá-lo sozinho, abracei-o forte, foi minha reação instantânea, e arrependido, querendo passar a ano todo com meu cão para compensar aquela terrível madrugada de sábado, em que por horas ele pensou ter sido abandonado por seus donos.
  

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Entregando currículo

Para minha surpresa entro no ônibus e me deparo com a cena mais esperada para um pobre cristão que no alto de seus 24 anos ainda não possui seu transporte próprio, o coletivo vazio, a sensação de encontrar um ônibus assim logo às 9h da manha é a mesma de receber uma boa notícia que se espera há meses, vontade incondicional de soltar aquele sorriso no rosto escondido ou que estava guardado há muito tempo na espera do momento áureo, dar um bom dia carregado de profunda entonação para o motorista e cobrador, logo enxergo não muito longe a pessoa de meu primeiro plano, um senhor moreno, com o semblante fechado, como de praxe olhando para a pessoa que está entrando no coletivo, eu, os olhares se cruzam em uma mínima fração de segundos e nada mais, aquele mísero contato ocular e o semblante carrancudo do senhor de camisa social branca com linhas em verticais azuis me faz de forma repentina voltar a realidade e obrigatoriamente terminar dentro de mim a pequena alegria que sentia por não ter que me espremer, esticar, ficar na ponta do pé, desviar de braçadas e punhais quando se está dentro de um ônibus povoado de contingente humano.  
Vou passeando e observando sem rumo fixo com o olhar perdido para o melhor assento, falta de costume por não encontrar as mesmas condições de transporte rotineiramente, até que me acomodo, sento colado na janela, aonde me propícia à paisagem urbana que vou perdidamente contemplando o vai e vem dos carros do sentido contrário e lembro que meu objetivo não é apenas me deleitar em um ônibus vazio e sim entregar quem sabe nas mãos da pessoa certa aquele que pode ser meu passaporte para uma mudança de vida, o currículo.
Com a cabeça baixa chego ao meu destino, vou caminhando em direção à empresa mesclando passos largos e curtos, entrando em consonância com meu pensamento confuso, um misto de quero voltar e pegar o primeiro transporte que aparecer seja ele lotado ou não, com, vou enfrentar o medo, a vergonha e com certeza a antipatia de quem receberá o currículo. Mas já havia superado 90% do caminho não há mais volta, não relutei, a primeira barreira é a porta de vidro descomunal para qualquer pessoa, comprida, larga, espaçosa e pesada, enfim estou dentro da empresa, mas querendo me retirar o mais rápido possível para não ser notado, para minha infelicidade o ambiente é calmo, quieto, tranquilo, tenho a sensação que todos observam qualquer movimento fora do comum, e aquela minha entrada era algo fora do comum, eu não iria consumir um produto, estava ali apenas para entregar um papel A4 no interior de um envelope branco, e com certeza todos no local notaram a minha presença “indevida”, acelero o passo em direção ao retangular balcão bege que vejo na minha frente com a palavra atendimento em tamanhos garrafais, com alívio e a respiração menos ofegante um homem de aparência jovial, vestia camisa amarela, incomum e desconforme com o ambiente de trabalho discreto, aparentava uma idade que não ultrapassava os 30, com a voz mansa e humilde peço a permissão para entregar em suas mãos o tal documento, que representa minha esperança, ele me flerta com um olhar de imenso desinteresse e de extrema inquietude, como se eu fosse a pessoa de número 200.456.700 que fizesse o mesmo pedido, a tristeza me dominou assim como a sensação de que estava incomodando seu trabalho, a pequena parcela de esperança que tinha me corroeu até murchar e por instantes eternos pensei em estar cometendo um crime cabal sem opção de defesa.
De forma mecânica e sem soltar uma sílaba se quer ele estende a mão e recebe o currículo, viro as costas lentamente como num slow motion esperando apenas a sua confirmação, agradeci pelo recebimento, ainda com um fio de cabelo de esperança acreditando que ele pudesse soltar uma frase que me confortaria nos momentos seguintes, mas na minha teimosia veio o tapa na cara, apenas balançou a cabeça que já estava abaixada na direção de seu caderno, foi minha penitência, foi como se estivesse recebendo o golpe de misericórdia, a punhalada fatal, o último derramar de sangue, o suspiro final e por fim, o decreto de morte.       

     

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A invasão dos coxinhas

Entro, após vagar pelo estacionamento A e pelo estacionamento B sem sucesso por uma vaga, consigo no último, o estacionamento C, onde o primeiro indivíduo do qual sentiria nojo e mal estar naquela tarde se encontra, o típico “coxinha” camisa gola polo branca bem passada da grife Overend, o olhar é penetrante, objetivo e concentrado na tela do celular, tem a aparência robusta, corpulento, e sem a mínima atenção e importância com o mundo a sua volta, pois o seu tempo é aquele instante compenetrado no iphone 4s branco. A sensação foi de “tudo bem acabei de chegar, deve ser uma exceção” ou por um lapso bem rápido de memória acreditei que seria uma infeliz receptividade atípica, subo na escada rolante, com os olhos atentos para o que viria em seguida, sem antes o meu horizonte poder me oportunizar o que iria vê em seguida, já estico o pescoço para matar a mínima curiosidade, até que chego ao andar em que desejo, e a sensação foi a pior possível, por um momento pensei em retornar e desistir do programa familiar, a fila era enorme, e o pior, cheio deles, de todas as formas com as quais se caracterizam e são intitulados, camisa polo bem alinhada de alguma grife famosa, a bermuda de cor chapada para combinar com a vestimenta superior, o cabelo rigorosamente penteado para um dos lados esquerdo ou direito sempre discreto, alguns utilizavam óculos de grau fortificando ainda mais seus traços característicos, e sempre, mas sempre mesmo, o eterno companheiro de status e glamour e objeto fundamental para sua derivação como tribo urbana, o smartphone, iphone 4s e Samsung galaxy são os mais comuns, eles abrem, liberam a senha, obrigatoriamente o primeiro aplicativo a ser aberto é o Whatsapp, sorriem, ficam sérios, incrédulos, olham para o lado para vê se podem abrir vídeos pornográficos e quando você chama a atenção para ele caminhar com o andar da fila, o sujeito ainda faz vista grossa como se estivesse incomodando a sua inestimável e prazerosa quase que sagaz relação com o celular, virando as costas de forma abrupta e jamais querendo ter outro contato destes, mesmo que daqui a 1 minuto a fila volte a andar e o repertório de ações humanas seja o mesmo.
Eles são 10,20,30 enfim, espalhados por todo o saguão, com as mesmas atitudes, previsíveis, comuns, sempre com requinte de indiferença com quem não esteja de acordo com o “padrão” coxinha, a chave do carro pendurado na bermuda- mesmo com 4 bolsos disponíveis - soa como o grand finale da personificação coxiniana, desço a escada rolante como quem desce uma escada normal, entro no agradável banheiro e me deparo com outros dois fazendo selfie no espelho, é o ponto culminante para minha retirada em disparada para o estacionamento C, ligo o carro e com o passar dos quilômetros distante daquele lugar o alívio vai me ajudando a esquecer aquela trágica tarde de domingo em um shopping da cidade.