A
missão não era das mais fáceis, havia um peso nas minhas costas, uma barreira a
ser quebrada, não sabia de forma alguma como lidar com aquela situação, e a
cada hora que passava o momento se aproximava e o sentimento de pena, pior
sentimento, e aflição, iam aumentando no peito até tomarem as batidas do meu
coração por completo. Agir daquela forma com um ser tão indefeso, tão meigo e
tão dependente de você doía a minha pessoa profundamente, me sentia como a pior
espécie da face da terra, a mais diabólica, a mais cruel, a mais sanguinolenta
e todos os adjetivos malignos que possa descrever um ser humano sem o mínimo de
amor num fiapo de cabelo.
Deixar
seu cachorro sozinho na sua casa enquanto você vai para um aniversário, pode
ser tarefa fácil pra quem tem um labrador, pastor alemão, fila, não queira
enfrentar o mesmo desafio quando se tem um poodle, uma raça extremamente
carente da presença humana, dócil, carinhoso, manhoso, no fatídico dia ele
infelizmente dormiu a tarde toda assim como eu não resisti ao agradável sono da
tarde, foi meu grande erro, a noite ele era outro cachorro, com vitalidade,
força de vontade, corria, latia, roia o osso com toda voracidade de quem jamais
havia tido objeto ideal para exercitar sua mandíbula e seus pequenos dentes.
A
cada ação de sua esperteza o medo ia me consumindo, já passava das 20h e ele
sem um pingo de demonstração de cansaço, abatimento ou dormência, muito pelo
contrário, continuava suas peripécias pela casa, andava para um lado e pro
outro na tentativa de encontrar algo que chame sua atenção, comia bem pouco,
bebia sua água, deitava com a cabeça em seu travesseiro olhando firmemente para
meus afazeres, nem piscando e nem transportando o olhar para outro lugar, apenas
fixo na minha pessoa, tentava não olhar, mas não tinha como, era um olhar que
me desarmava por completo, instigava imediatamente a ir até ele e fazer aquele
cafuné em sua barriga, carinho do qual é o seu predileto, e agora? Dizia eu.
O
momento mais dramático e decisivo chegou, já eram 23h e tinha que sair, passei
minha camisa social preta bem demorado justamente para o tempo passar e me
ajudar a enfraquecer aquele cachorro, tentativa em vão, o pior ainda estava por
vir, estava pronto, de calça e sapato social bico fino, como se ele estivesse
adivinhando que seu único companheiro daquela noite teria um outro destino que
não seria dormir junto com ele, como se o instinto canino avisasse que seu dono
iria lhe deixar sozinho na casa, ele se deitou, em apenas alguns minutos fechou
seus olhos que dificilmente se vê com a densa pelugem da cabeça, mas para minha
surpresa, o seu leito daquela noite foi o único lugar que ele jamais deveria
estar, todos menos aquele lugar, poderia ser a cozinha, próximo a cama como por
vezes ele costuma relaxar, ou até mesmo encostado na parede embaixo da janela
seu local mais comum para o sono noturno, mas ele me surpreendeu, e se deitou
em frente a porta, a minha única passagem, já tinha em mente que iria abrir a
porta bem devagar, girar a barulhenta chave e sair de forma cautelar sem fazer
muito alvoroço para deixá-lo dormindo, só não contava com a sua astúcia, não
sei se propositalmente de dormir em frente a porta, e agora? Dizia eu mais uma
vez.
Minha
reação foi de incredulidade total, perplexo com o que via em minha frente, me
aproximei e sentia sua respiração de sono profundo latejar, passei de forma
carinhosa minha mão em sua cabeça, ele se espantou imediatamente, como se já
estivesse no 5º sono, tirei-o da direção da porta, era a única alternativa, lhe
agraciei mais um pouco dando boa noite, na esperança que aquela seria a última
coisa que falaria para ele no dia, ele não relutou, apenas deitou a cabeça de
lado no chão e foi fechando os olhos, era a minha vitória, finalmente a
sensação de alívio me tomou conta, apanhei meu celular e minha carteira e
surpreendentemente, com uma inteligência audaz, ele se dirigiu novamente para a
porta, deitou sem pudor em revolta ao meu ato de ter lhe trocado de posição,
era realmente uma afronta, naquele momento tive a certeza de que estava numa
disputa acirrada com meu cão, de um lado ele impedindo com unhas e dentes a
noite solitária, do outro eu, querendo ludibriá-lo com a minha ausência, foi
quando as saídas daquele labirinto cessaram até restar apenas uma, a mais
dolorosa, aquela que iria partir o coração, abri a porta, ele se espantou
novamente, ainda sem saber o que estava ocorrendo arredou para minha inevitável
saída, já do lado de fora, fui fechando a porta lentamente olhando para ele, os
olhos lacrimejaram, coração apertado por uma sinta, como de alguém que
estivesse se despedindo pra sempre de seu ente querido, ele apenas virou a
cabeça 30º graus pra direita, interpretei como se fosse a interrogação surgindo
na sua mente, fechei a porta, tranquei, me sentindo um agente penitenciário
trancando a liberdade de um preso, foi cruel demais comigo e com ele.
Retornei
às 4h da manhã, ansioso para saber o estado do meu cão, ingênuo jurava que
estivesse dormindo profundamente, mais uma surpresa, chegando perto da porta já
escutava aquele latido desesperado, pedindo compaixão e socorro, assustado abri
a porta, não vi outra coisa, ele estava acordado, aparentemente a noite toda
acordado, pulou nos meus braços de forma meteórica, ainda chorando, como se
estivesse pedindo para nunca mais deixá-lo sozinho, abracei-o forte, foi minha
reação instantânea, e arrependido, querendo passar a ano todo com meu cão para
compensar aquela terrível madrugada de sábado, em que por horas ele pensou ter
sido abandonado por seus donos.